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História clínica
Paciente, 58 anos, sexo feminino, com queixa de dor abdominal e perda ponderal significativas iniciadas em maio de 2021. Exame físico sem alterações e colposcopia dentro da normalidade. Investigação com ressonância magnética de pelve e de abdômen mostrou: volumosa formação expansiva sólido-cística, predominantemente cística, na região anexial esquerda, medindo cerca de 19,0 cm no seu maior eixo. A lesão é multiloculada, com sinais de rotura em seu componente posterior, associado a ascite mucinosa por pseudomixoma peritoneal, destacando-se pequenos implantes mucinosos justacapsulares hepáticos em particular na interface sub-diafragmática. Destaca-se, também, insinuação de cisto anexial em região de cicatriz umbilical. O ovário direito era de difícil visualização, porém sem massas suspeitas. Os marcadores séricos estavam alterados como alfa-fetoproteína (AFP) acima de 20.000 ng/ml, CA125 de 179 U/ml com CEA e CA19.9 dentro dos valores da normalidade.
A paciente foi submetida a salpingectomia e ooferectomia a esquerda, sendo encaminhada peça cirúrgica para processo de congelação no setor de Patologia. O laudo deste procedimento foi liberado como tumor ovariano com células atípicas (possivelmente serosas) com extensa necrose superficial, sendo necessário cortes representativos na análise do material da parafina, para definição diagnóstica. Posteriormente foi encaminhado ao mesmo setor, uma citologia oncótica de lavado peritoneal junto com um produto de ressecção de útero + anexos direitos, linfonodos ilíacos externos a esquerda e obturatório esquerdo, e fragmentos de aponeurose de cicatriz umbilical, além de omento.
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Handout
À macroscopia, ovário esquerdo apresentava uma formação cística, pesando 900 g e medindo 26,0 x 23,0 x 18,0 cm, com superfície externa lisa e pardo-acinzentada. Aos cortes seriados, saída de líquido hemorrágico com superfície interna branco-amarelada. A lesão era multiloculada, com cavidades císticas medindo até 6,0 x 2,5 cm, amplamente ocupadas por material líquido de coloração acastanhada, com regiões mais endurecidas medindo até 0,7 cm no maior eixo, e com focos, nas áreas mais sólidas, de material de aspecto necrótico. Macroscopicamente, a cápsula ovariana encontrava-se preservada. A tuba uterina esquerda possuía 4,0 cm de comprimento e 0,9 cm no maior diâmetro, com lúmen virtual. A macroscopia do útero mostrava aspecto piriforme, com peso de 225 g, medindo 8,0 x 8,0 x 0,5 cm, sendo identificadas apenas tumorações ovoides e fasciculadas em paredes uterinas, o ovário direito e a tuba direita não possuíam particularidades à microscopia e o omento possuía 2 (dois) arranjos nodulares com superfície compacta e brancacenta, o maior deles medindo 8,0 cm no maior eixo.
À microscopia, o tumor ovariano à esquerda e os nódulos de omento eram compostos por ninhos e cordões de grandes células (Figura 1 e 2) separados por um fino estroma fibroso. As células neoplásicas eram arredondadas e, por vezes, poligonais com abundante citoplasma claro (Figura 3). Seus núcleos eram redondos e centralmente localizados, com proeminentes nucléolos (Figura 3). Muitas células continham glóbulos e grânulos hialínicos intracitoplasmáticos de tamanhos variados (Figura 4). Em algumas áreas, os agregados celulares foram interrompidos por espaços císticos de tamanho variável. Diversos focos de necrose eram identificados na microscopia (Figura 5). A cápsula tumoral e tuba uterina esquerda eram livres de neoplasia e não foram identificadas invasões (vascular sanguínea, linfática e perineural) nas secções avaliadas. Imunohistoquimicamente, existia imunorreatividade citoplasmática positiva para pancitoqueratina, alfa-fetoproteína (AFP) (Figura 8), glipican-3, Hep-par 1 (Figura 7), CD10, e positividade nuclear para SALL4 (Figura 6). O CK7 e CK20 foram negativos, assim como WT1-C, PAX 8, e receptores hormonais.
A citologia de líquido peritoneal foi negativa para células neoplásicas e análise histopatológica das outras peças enviadas mostrava alterações benignas como: cistos foliculares em ovários, leiomiomas uterinos em miométrio, linfonodos livres de neoplasia além de processo inflamatório agudo em fragmento de aponeurose de cicatriz umbilical.
Uma variedade de tumores ovarianos que exibem diferenciação hepatóide foram relatados na literatura. Entre as neoplasias ovarianas, as derivadas de células germinativas tumorais são as mais frequentemente associadas a focos de diferenciação hepatóide. Um amplo espectro de padrões histológicos é visto em tumores de saco vitelínico (Tumor de Yolk-Sack – TYS), estes incluindo o padrão reticular ou pseudopapilar e padrões sólidos, refletindo diferenciação em direção a diversas estruturas. Raramente, diferenciação em tecidos embrionários de origem endodérmica, como intestinal e hepática também ocorrem no TYS 1.
Muitos tumores ovarianos têm ninhos de células que se assemelham às células hepáticas, mas geralmente são interpretadas como células hilares, de Leydig ou do estroma luteinizado. É possível que a incidência de diferenciação hepática em tumores ovarianos seja ainda maior devido ao sub-reconhecimento da diferenciação hepatóide. O uso de anticorpos contra a citoqueratinas não é útil na distinção de células hepáticas e de células estromais luteinizadas em neoplasias ovarianas. É necessário um painel amplo de anticorpos, incluindo AFP e marcadores de origem germinativa como o SALL4. O TSY com diferenciação hepatóide deve ser diferenciado de outras patologias que exibem um padrão hepático.
Foram descritas neoplasias semelhantes a carcinomas hepatocelulares que surgiram em uma variedade de órgãos, incluindo estômago, pulmão, bexiga, pelve renal, ampola de Vater, trompa de Falópio, endométrio e ovário e foram chamados de carcinomas hepatóides. Metástase ovariana destes carcinomas e o carcinoma hepatóide primário de ovário devem ser incluídos no diagnóstico diferencial do TYS. Os padrões típicos de adenocarcinoma são geralmente presentes nesses carcinomas hepatóides e este é um recurso útil para estabelecer o correto diagnóstico 1.
Os raros teratomas hepatóides (HTs) em pacientes com tumor de células germinativas testiculares mimetizam o tumor hepatóide do saco vitelino (TYSH) e o carcinoma hepatocelular (CHC). Os HTs formam camadas de células semelhantes a hepatócitos com gordura macrovesicular dispostas em lóbulos vagos com bandas fibrosas intermediárias contendo estruturas semelhantes a ductos biliares e tríades portais abortivas. Os HTs não apresentavam depósitos hialínicos, e a positividade para glipican-3, arginase e HepPar-1 estavam presentes. Nesses casos, as imunohistoquímicas para SALL4 e CDX2 foram negativas. TSYH formam ninhos, trabéculas e cordões, e o SALL4, glipican-3 são positivos enquanto HepPar-1 destaca células tumorais raras. CHCs não têm depósitos de grânulos hialínicos, porém corpos de Mallory-Denk ocorrem com frequência. Nestes tumores o HepPar-1 é sempre positivo, glipican- 3 é infrequente, e SALL4, negativo 2.
Nosso paciente continua em seguimento com a oncologia, não sendo indicada nova reabordagem cirúrgica.
Referências bibliográficas
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